terça-feira, 15 de abril de 2008

OS RETORNADOS:- REFUGIADOS DAS COLÓNIAS

A SURPREENDENTE INTEGRAÇÃO DOS RETORNADOS
Ainda hoje não se sabe ao certo qual o número dos portugueses que, desfeito o império colonial na sequência de 25 de Abril de 1974, retornaram de África. Algumas estatísticas referem oitocentos mil, outras um milhão. Vieram – o eco do seu êxodo condoeu então o mundo – de Angola, Moçambique, Guiné, S. Tomé e Príncipe, Cabo Verde, golfados em caudais intermináveis de espanto e desolação.
Apontada como um fenómeno ímpar de absorção social, só possível em povos de grande afectuosidade, a integração dos retornados portugueses tornou-se, escassos anos após terem chegado, um caso surpreendente. À desconfiança inicial, hostilidade com que foram recebidos, suceder-se-ia a aceitação, a convivência mútuas.
A França (com retornados da Indochina, da Tunísia, de Marrocos, da Argélia), a Itália (da Líbia, da Abissínia), a Bélgica (do Congo) sofrem ainda internamente sequelas graves da sua descolonização. Aparentemente Portugal digeriu-a. Os que se refizeram, ergueram-se, com efeito, e atiraram-se em frente. Dispersaram-se em pequenos grupos por todo o país, e em pequenas ocupações por todos os sectores.
Como novos bandeirantes, colonos uma vez mais, foram para o interior carregando cóleras e pânico, vinganças e ousadias.
O seu desespero foi a sua força. Com ajuda de instituições, de subsídios, de empréstimos, de apoios de amigos e familiares, começaram a fixar-se e a transformar os locais onde se detiveram. A emigração, a guerra e o exílio tinham despovoado Portugal. Aldeias inteiras apenas albergavam velhos e crianças, povoações havia que não tinham sequer um habitante. Era um país de deserções e decrepitudes a viver das remessas dos emigrantes e dos militares – e da passagem dos turistas.
Então repetiram aqui o que há decénios faziam lá”Portugal foi reconstruído pela energia dos retornados”, exclamará Agostinho da Silva. "Eles lançaram mão a tudo, usaram com as pessoas de cá os mesmos métodos que usaram com as de lá. Não trouxeram divisas, como os emigrantes, mas construíram coisas”.
PACTO DE HUMILDADE
O exemplo que deram de trabalho, iniciativa, inter ajuda, perseverança, depressa lhes granjeou respeito e admirações. Fixados no comércio, na indústria, na agricultura, nos serviços, nas autarquias, nos partidos, nas artes, na imprensa, no Governo, tornaram-se referências irrecusáveis.
Diversos organismos surgiram em sua defesa. Organismos religiosos, políticos, assistenciais, culturais, educativos; oficiais como o IARN, internacionais como o apoio Cristão e a Cruz Vermelha, filantrópicos como a Associação de Apoio aos Angolanos, reivindicativos como a Associação dos Naturais de Fraternidade Ultramarina, recreativos como os Inseparáveis do Lubango. Os mais crentes arranjaram uma santa sua, a Nossa Senhora dos Retornados, os mais dinâmicos uma imprensa própria.
Após a chegada a Lisboa recebiam (parte deles) alimentação e assistência; alguns beneficiaram de créditos, subsídios que lhes permitiram reorganizar-se e lançar-se em diversas actividades.
A ajuda prestada não proveio, porém, só do Estado português. Apreciáveis fatias surgiram de outros países que contribuíram com casas, dinheiro, géneros, empregos. “O êxito da integração não é total, foi a política seguida pelo Governo que calou os retornados”, sublinha João Cabral, do Apoio Cristão Internacional. “Separaram-nos, polvilharam-nos pelo país, tiraram-lhes a força. Eles resignaram-se”.
A solidariedade fez-se-lhes uma religião de pequenos rituais e memórias. Baptizados pelo mesmo fogo, conheceram o mesmo pânico, o mesmo desamparo, o mesmo luto – um pacto de humanidade uniu-os para sempre.
“Os que sofreram mais problemas foram os retornados de segunda geração”, especifica-nos a psiquiatra Gracinda Ribeiro. “Os pais foram capazes de refazer a vida, de encontrar e interessar-se por novas actividades. Mas os filhos sofreram uma grande inadaptação, sofreram problemas psicológicos muito graves”.
MAIS QUALIFICADOS
Desmentindo o conteúdo catastrofista que muitos lhes vaticinaram (serem um fardo para as disponibilidades do país), a sua presença atenuou as chamadas “dinâmicas regressivas” que então se observavam entre as nossas populações. A maioria dos retornados adultos nasceu em Portugal tendo emigrado para as colónias durante as décadas de 50 e 60, pelo que os seus vínculos às origens permaneceram fortes. Quase dois terços vieram de Angola e um de Moçambique.
Revelaram-se “mais qualificados, não só que a população emigrada, mas também que a restante população portuguesa”, com uma “percentagem elevada detentora de cursos médios e superiores”, conclui um trabalho, único do género, do Instituto de Estudos Para o desenvolvimento, coordenado por Rui Pena Pires, José Maranhão, João Quintela, Fernando Moniz e Manuel Pisco, com supervisão de Manuela Silva.
“Apenas sete por cento eram analfabetos, contra 30 por cento dos restantes portugueses. Constituíam uma população predominantemente masculina e jovem”. Isso ocasionou um aumento geral de mão de obra qualificada em certos sectores, bem como a presença destacada de muitos em lugares de liderança, tanto no plano profissional como no político, nomeadamente a nível local.
De subvalorizados passam a sobrevalorizados. Vivendo em círculos concêntricos, assumem-se em certas zonas como “castas” de poderio crescente. Alguns tornam-se os novos donos da terra – controlam vários sectores, são a sua classe dirigente e exigente; formam uma rede por todo o país que se organiza, alarga, fortalece, interpenetra.
As franjas dos retornados fraccionam-se, enovelam-se, porém; alguns retornaram sem terem partido, migrantes de outras paragens e outros desencontros. São os indianos hindus (oriundos da União Indiana), os indianos paquistaneses (oriundos do Paquistão), chiitas, sunitas, ismaelitas, vindos de Moçambique onde constituíam poderosas comunidades rácicas, religiosas, culturais; e são ainda os timorenses, os mais desprotegidos e precários de todos.
As organizações de apoio que lhes foram dirigidas desaparecem rapidamente. O IARN fecha em 1977. A própria palavra “retornado” (muitos nunca cá tinham estado) cai no desuso e no esquecimento.
ANTIGOS RETORNADOS
A nossa debandada de África constituiu uma das grandes tragédias da história, uma história trágico-marítima ao contrário que vazou nos portos de Alcântara e Portela populações em situação limite.
Com a mesma convicção que iniciámos mares e impérios desistimos deles, renunciámos a eles, tudo deixando por completar.
Quando D. Dinis acaba o seu reinado Portugal está pronto. Tem o território definido, possui campos férteis (defendidos das areias pelo pinhal de Leiria), dispõe de castelos sólidos (que não deixam avançar os invasores), desfruta de religião própria (o Espírito Santo), de solidariedade social (o comunalismo), exulta vontade de existir.
Existir desenvolvendo-se internamente (podia ser hoje uma Dinamarca), ou derramando-se externamente. Derramou-se. Engendra então a espantosa gesta das Navegações que o faz mudar o mundo, e adiar-se de si.
O retorno começou-nos muito antes de 1974. Há quatro séculos, vindos do Magrebe, desembarcaram no Algarve e em Lisboa os primeiros retornados do império. Eram militares, comerciantes, missionários, mulheres, crianças, escravos, regressados de Safim, Azamor, Arzila, Santa Cruz.
“ D. João III, no abandono, fez o que não podia deixar de ser”, evoca António Sérgio… A maior parte das evacuações foram realizadas “com tanta ordem e concerto”, testemunha Frei Luís de Sousa, “que quando chegou a notícia aos mouros, estava tudo feito, recolhidas nas embarcações a gente e a artilharia, e munições, cavalos e alfaias dos moradores”.
Foram operações navais de grande vulto. À escala das pontes aéreas de 1975. “Haviam-se criado duas gerações de portugueses em Marrocos. Havia esposas, filhos e famílias a transferir, uma população civil a transplantar, bem como fortalezas a demolir”, escreve Elaine Sanceau.
Há 400 anos, como há 20, os “traídos” pela metrópole concentraram-se no Rossio a injuriar os governantes e os naturais. Até que estes os disseminaram pelo interior e os integraram.
FASCÍNIO POR ÁFRICA
África foi portugalizada nos últimos séculos, Portugal africanizado nos últimos decénios. Os musseques do Prenda repetem-se no Alto do Dafundo, as marrabentas agitam os bailes dos domingos suburbanos, as churrasqueiras fumegam, nas estradas beirãs, o caril, a cerveja, o fumo, os fumos sobem nos planaltos nortenhos; o imaginário dilatou-se, as histórias de caça, de aventuras, de magia, de abundância, perpassaram os cabeços de granito e giesta.
A década de noventa está a ser marcada pelo fascínio por África, a melancolia dos seus mitos envolve-nos de novo, a força que se desprende deles começa a ser irresistível sobretudo para os que nas letras, nas artes, no pensamento, no comércio, na política, na imprensa, a percepcionam – veja-se a série de filmes de jovens realizadores portugueses, e de álbuns musicais, que estão a surgir sobre ela.
“Portugal não fez ainda o seu luto pelas ex-colónias: o silêncio vai sendo levantado, gradualmente, mas a voz da perda não é ainda aceite”, escreve Ana Simões SottoMayor de Almeida em “O luto no retorno dos portugueses das ex-colónias africanas”, tese notável a ser em breve apresentada no ISPA. Fechado o ciclo do império o retorno tornou-se (retorno de África, retorno da emigração) tão importante como há cinco séculos a partida – é por certo o fenómeno mais marcante da história de Portugal depois das Descobertas.
Interrompido desde então (todos quantos eram ousados e insubmissos partiam fugidos à fome, à intolerância), só agora o País está a reencontrar-se, a completar-se. O que coincide, e não é certamente por acaso, com a sua entrada na CEE.
Artigo de Fernando DacostaIn o “PÚBLICO” de 26, Abril,1995

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