Avicena (980-1037)
Médico e filósofo muçulmano, Abu ' Alí al-Husayn ibn Sínã, era filho de uma família de altos funcionários iranianos de origem turca, tendo recebido uma educação baseada no enciclopedismo. Foi autor de uma obra enciclopédica, sendo considerado um intelectual medieval, em que as suas ideias tiveram uma enorme autoridade na medicina até aos tempos modernos. A sua principal obra foi Canône de Medicina, escrita a partir do legado de Galeno, um médico grego do século I d. C., foi traduzida para latim no século XII e reeditada em várias ocasiões, sendo mesmo uma das bases do ensino da medicina até ao século XVII. Era intitulado como sendo autor de duzentas e cinquenta obras, em árabe e persa. Como filósofo, no mundo muçulmano, procurou um conhecimento intelectual e intuitivo, tratando de conciliar o dogma do Corão com o racionalismo aristotélico matizado de neoplatonismo. Desempenhou um papel bastante importante, tanto na Medicina como na Filosofia, na cultura ocidental, podendo mesmo falar-se de um "avicenismo latino", com influência na obra de alguns pensadores cristãos, como S. Alberto Magno, S. Tomás de Aquino*, Roger Bacon e Duns Escoto.Abu Ali al-Husavn ibn Abd Allah Ibn Siná, conhecido no Ocidente por Avicena, vê a luz do dia em Agosto de 980, no seio de uma família persa de Afshanah, uma aldeia próxima de Bukhara, a capital da Transoxiânia, nos confins; do Irão [e capital do Uzbequistão actual]. O pai, homem culto, é um alto funcionário da administração na localidade vizinha de Kharmaythan. Da mãe, sabe-se apenas o nome: SiWrah. Ibn Siná terá um irmão, Mahmoud, cinco anos mais novo. A família em breve se instala em Bukhara, onde o futuro Avicena recebe em casa, logo que começa a falar, a instrução própria dos miúdos da sua idade. Como todas as crianças muçulmanas, a primeira frase que aprende é a profissão de fé: " Atesto não haver outro Deus a não ser Alá, e que Maomé é o seu profeta." Avicena cresce numa Bukhara governada pelos samânidas há século e meio. (...)A casa da família de Avicena é um local de cultura e de debate. Com apenas dez anos, esta criança fora do comum, além de dominar o Corão, surpreende pelos conhecimentos de literatura e matemática. Estamos na época em que o ismaelismo, o ramo mais esotérico do xiismo, faz adeptos entre a burguesia erudita de Bukhara, inclusive o pai de Avicena e, mais tarde, o próprio irmão. Enviados ou encorajados pelo califado xiita fatímida do Cairo, rival tenaz de Bagdad, os missionários ismaelitas pregam em segredo a sua fé e vendem nas ruas os seus textos "subversivos". Avicena trava conhecimento com alguns deles, convidados pelo pai para serões de amigos, ouve-os O rapazinho conhece as teses das cinquenta e duas "Epístolas dos Irmãos da Pureza", uma colectânea de textos ismaelitas que preconizam o renascimento moral, espiritual e político do is1ão, numa tentativa de síntese do património grego com o pensamento muçulmano renovado. Medita nas novas ideias, mas sem as tomar como suas. "O meu espírito não as aceitava", dirá mais tarde na autobiografia. Os mestres de Avicena sucedem-se. O adolescente aprofunda a álgebra e a geometria com um mercador de legumes, grande conhecedor do "cálculo indiano". Apreende as subtilezas do direito religioso, pratica a arte da acusação e da defesa com um certo Ismael, o Asceta. Mergulha na filosofia sob a égide de um professor reputado, al-Natili, que fica siderado com a agilidade intelectual do jovem. Quer no estudo da "Isagoge" de Pórfiro - a melhor introdução à lógica de Aristóteles - quer na aprendizagem da geometria euclidiana, o aluno malabariza com os conceitos melhor e mais depressa do que o mestre. Invertendo os papéis, Avicena explica a al-Natili os pontos delicados do sistema astronómico de Ptolomeu. 0 professor aconselha-o a consagrar-se ao estudo a tempo inteiro. Avicena deixa de ter preceptor à altura. Mas isso que importa? A inteligência, o trabalho e os livros se encarregarão do trabalho: passará a ser o seu próprio pedagogo. (...)Quanto à medicina; considera, "não é uma ciência difícil". Dedica-se-lhe a fundo e, também aqui, rapidamente se distingue. Em breve, não só a exerce como a ensina. Terapeutas veteranos vêm ouvir o jovem prodígio, que analisa e comenta com entusiasmo a arte de Hipócrates e de Galiano. Familiariza-se com o direito muçulmano. Tem 16 anos. (...)Com a filosofia no posto de comando, desenvolve o sentido da dialéctica e aguça o raciocínio à força de silogismos cujas premissas e conclusões anota cuidadosamente. Explora, horas a fio, os arcanos do pensamento lógico, no encalço, também ele, do sonho impossível dos filósofos muçulmanos do seu tempo: ordenar em silogismos a complexidade do universo. (...)Depois da morte do pai, em 1002, aceita um cargo na administração do príncipe Karakhánida Nasr, que governa Bukhara. Uma experiência efémera, que termina numa partida precipitada, talvez em 1005. Avicena passará, desde então, a levar uma vida errante. Durante 30 anos, conhecerá as agruras e incertezas do exílio, em bolandas de um lado para o outro, à mercê das guerras e das conquistas, numa época de intensos tumultos. Dedica-se à política e participa nas expedições dos protectores. O poder, que ele compara a um fruto amargo, não o fascina.
Adaptado de artigo do Jornal Público, 13 de Agosto de 2000
Médico e filósofo muçulmano, Abu ' Alí al-Husayn ibn Sínã, era filho de uma família de altos funcionários iranianos de origem turca, tendo recebido uma educação baseada no enciclopedismo. Foi autor de uma obra enciclopédica, sendo considerado um intelectual medieval, em que as suas ideias tiveram uma enorme autoridade na medicina até aos tempos modernos. A sua principal obra foi Canône de Medicina, escrita a partir do legado de Galeno, um médico grego do século I d. C., foi traduzida para latim no século XII e reeditada em várias ocasiões, sendo mesmo uma das bases do ensino da medicina até ao século XVII. Era intitulado como sendo autor de duzentas e cinquenta obras, em árabe e persa. Como filósofo, no mundo muçulmano, procurou um conhecimento intelectual e intuitivo, tratando de conciliar o dogma do Corão com o racionalismo aristotélico matizado de neoplatonismo. Desempenhou um papel bastante importante, tanto na Medicina como na Filosofia, na cultura ocidental, podendo mesmo falar-se de um "avicenismo latino", com influência na obra de alguns pensadores cristãos, como S. Alberto Magno, S. Tomás de Aquino*, Roger Bacon e Duns Escoto.Abu Ali al-Husavn ibn Abd Allah Ibn Siná, conhecido no Ocidente por Avicena, vê a luz do dia em Agosto de 980, no seio de uma família persa de Afshanah, uma aldeia próxima de Bukhara, a capital da Transoxiânia, nos confins; do Irão [e capital do Uzbequistão actual]. O pai, homem culto, é um alto funcionário da administração na localidade vizinha de Kharmaythan. Da mãe, sabe-se apenas o nome: SiWrah. Ibn Siná terá um irmão, Mahmoud, cinco anos mais novo. A família em breve se instala em Bukhara, onde o futuro Avicena recebe em casa, logo que começa a falar, a instrução própria dos miúdos da sua idade. Como todas as crianças muçulmanas, a primeira frase que aprende é a profissão de fé: " Atesto não haver outro Deus a não ser Alá, e que Maomé é o seu profeta." Avicena cresce numa Bukhara governada pelos samânidas há século e meio. (...)A casa da família de Avicena é um local de cultura e de debate. Com apenas dez anos, esta criança fora do comum, além de dominar o Corão, surpreende pelos conhecimentos de literatura e matemática. Estamos na época em que o ismaelismo, o ramo mais esotérico do xiismo, faz adeptos entre a burguesia erudita de Bukhara, inclusive o pai de Avicena e, mais tarde, o próprio irmão. Enviados ou encorajados pelo califado xiita fatímida do Cairo, rival tenaz de Bagdad, os missionários ismaelitas pregam em segredo a sua fé e vendem nas ruas os seus textos "subversivos". Avicena trava conhecimento com alguns deles, convidados pelo pai para serões de amigos, ouve-os O rapazinho conhece as teses das cinquenta e duas "Epístolas dos Irmãos da Pureza", uma colectânea de textos ismaelitas que preconizam o renascimento moral, espiritual e político do is1ão, numa tentativa de síntese do património grego com o pensamento muçulmano renovado. Medita nas novas ideias, mas sem as tomar como suas. "O meu espírito não as aceitava", dirá mais tarde na autobiografia. Os mestres de Avicena sucedem-se. O adolescente aprofunda a álgebra e a geometria com um mercador de legumes, grande conhecedor do "cálculo indiano". Apreende as subtilezas do direito religioso, pratica a arte da acusação e da defesa com um certo Ismael, o Asceta. Mergulha na filosofia sob a égide de um professor reputado, al-Natili, que fica siderado com a agilidade intelectual do jovem. Quer no estudo da "Isagoge" de Pórfiro - a melhor introdução à lógica de Aristóteles - quer na aprendizagem da geometria euclidiana, o aluno malabariza com os conceitos melhor e mais depressa do que o mestre. Invertendo os papéis, Avicena explica a al-Natili os pontos delicados do sistema astronómico de Ptolomeu. 0 professor aconselha-o a consagrar-se ao estudo a tempo inteiro. Avicena deixa de ter preceptor à altura. Mas isso que importa? A inteligência, o trabalho e os livros se encarregarão do trabalho: passará a ser o seu próprio pedagogo. (...)Quanto à medicina; considera, "não é uma ciência difícil". Dedica-se-lhe a fundo e, também aqui, rapidamente se distingue. Em breve, não só a exerce como a ensina. Terapeutas veteranos vêm ouvir o jovem prodígio, que analisa e comenta com entusiasmo a arte de Hipócrates e de Galiano. Familiariza-se com o direito muçulmano. Tem 16 anos. (...)Com a filosofia no posto de comando, desenvolve o sentido da dialéctica e aguça o raciocínio à força de silogismos cujas premissas e conclusões anota cuidadosamente. Explora, horas a fio, os arcanos do pensamento lógico, no encalço, também ele, do sonho impossível dos filósofos muçulmanos do seu tempo: ordenar em silogismos a complexidade do universo. (...)Depois da morte do pai, em 1002, aceita um cargo na administração do príncipe Karakhánida Nasr, que governa Bukhara. Uma experiência efémera, que termina numa partida precipitada, talvez em 1005. Avicena passará, desde então, a levar uma vida errante. Durante 30 anos, conhecerá as agruras e incertezas do exílio, em bolandas de um lado para o outro, à mercê das guerras e das conquistas, numa época de intensos tumultos. Dedica-se à política e participa nas expedições dos protectores. O poder, que ele compara a um fruto amargo, não o fascina.
Adaptado de artigo do Jornal Público, 13 de Agosto de 2000
Sem comentários:
Enviar um comentário